As mulheres desaprenderam a parir? - II
SEGUNDA PARTE
Alguns profissionais de saúde ficam magoados com a expressão "humanização" do nascimento, dizendo que uma proposta como essa carrega o peso de considerar como “desumana” a assistência que é oferecida às mulheres pelo modelo atual de atenção ao parto. Cai sobre médicos, enfermeiras e outros profissionais ligados ao parto o peso de estarem oferecendo um trabalho indigno, equivocado, grosseiro e inaceitável para os seres “humanos”. Nossa crítica, entretanto, não se dirige aos cuidadores que atendem o nascimento mas, sim, ao modelo biomédico e tecnocrático de atenção, que despersonaliza e coisifica gestantes, não levando em consideração as dimensões humanas e subjetivas deste evento. Faz-se necessário, portanto, deixar claros os termos para que a compreensão seja facilitada. Desta maneira, poderemos esclarecer os pontos fundamentais do projeto global de humanização, sem cair na tentação fácil de criarmos culpados e vítimas; algozes e mártires.
Ao conversar sobre as teses humanistas com colegas da medicina estes freqüentemente me propõem questões como estas:
Porque falas em "humanizar o nascimento"? Por acaso o parto que nós fazemos nos hospitais não é nos seres humanos? Por acaso nossa visão de saúde e doença recai sobre algum outro primata ou algum réptil? Não está na hora de trocarmos esta expressão por algo mais sutil, menos agressivo, mais amplo, mais abrangente, e que tenha mais a ver com sua proposta de "suavizar" o atendimento?
Para este tipo de pergunta, normalmente pertinente, é importante que possamos definir com a máxima precisão os termos utilizados, como bem dizia Voltaire, para que não ocorram interpretações que fujam das intenções iniciais.
Minha resposta a tal inquirição é propositadamente didática. Quando nos referimos à Humanização do Nascimento, não nos preocupamos com as classificações meramente biológicas que se pode abstrair da palavra "humano". Humano aqui não está em contraposição às outras espécies que habitam o planeta mas, sim, a um modelo filosófico de entendimento da realidade circundante. Humanização do nascimento nos remete à doutrina ou atitude que se situam definitivamente numa perspectiva antropocêntrica, em domínios e níveis diversos, assumindo, com maior ou menor radicalismo, as conseqüências daí decorrentes. Manifesta-se o Humanismo nos domínios lógico e no ético. Neste último, aplica-se àquelas doutrinas que afirmam ser o HOMEM o criador dos valores morais, que se definem a partir das exigências concretas, psicológicas, históricas, econômicas e sociais que condicionam a vida humana, conforme definição constante no dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda.
Na Renascença, os Humanistas opunham-se ao teocentrismo pessimista, que colocava o homem como a falha divina, o erro irrecuperável da criação, a cópia imperfeita da do Todo Poderoso. Os que se opunham à esta visão desesperançosa da espécie humana, glorificavam o homem, enxergando nele, tal qual o paganismo greco-romano, a imagem do Deus em potencialidade. As imagens renascentistas do homem redescoberto e exaltado nos trouxeram de novo a esperança da renovação do espírito humano, fugindo assim da escuridão fria e insípida da idade das trevas.
Na obstetrícia, o Humanismo vem propor uma nova abordagem da assistência, colocando a mulher como centro de qualquer ação. Dela, e apenas dela, devem surgir as decisões sobre seu parto, sua vida e seu destino. Dela devem partir as vontades e os desejos. Pareando-se com a religião fechada e autoritária da Idade Média, a medicina precisa reencontrar seu lugar de apoio aos doentes, fugindo da sombra de autoritarismo que a acompanha, para uma nova posição de auxílio incondicional. Assim também a religião precisa se reestruturar para abandonar de vez sua história de intolerância e dogmatismo.
Na Renascença, o Humanismo não se opunha à idéia da divindade, e nem era contra a natural religiosidade das pessoas. Ao contrário, homenageava o criador, mostrando e apontando as virtudes de sua mais elaborada criação: o homem. Na medicina de hoje, o Humanismo vem cumprir uma tarefa semelhante. Não é sua missão acabar com a tecnologia, ou mesmo de ser um obstáculo à pesquisa e ao crescimento das idéias, mas entender que toda a ciência deve ser voltada para o homem e sua existência, jamais negligenciando as infinitas conexões que nos unem com a natureza circundante. O Humanismo na medicina é ecológico e fraterno, porque não acredita num ser humano isolado do resto da criação, e acredita, como sempre me repetia Max, no antigo adágio de que "A fraternidade é o mais elevador meio de relação entre as criaturas".
O Humanismo se impõe cada vez que uma história de violência ocorre diante dos nossos olhos. Toda vez que os valores econômicos, corporativos, profissionais, ideológicos ou religiosos têm mais peso numa decisão do que as vontades soberanas e sagradas de uma mulher sobre seu próprio corpo, sua necessidade se faz mais evidente.
“Humanização do nascimento é restituição do protagonismo à mulher; o resto é sofisticação de tutela”, como já dizia o personagem/filósofo Maximilian Trebreh. Nossa idéia vai muito além de “suavizar a atenção”, ou primar pelo carinho e gentileza. Sem o direito resgatado às pacientes para que tomem decisões e façam escolhas, não estaremos oferecendo a dignidade que o nascimento humano exige. Mantendo mulheres amordaçadas, não recuperaremos o verdadeiro valor que o nascimento possui. Se quisermos realmente mudar a humanidade, é importante mudar a forma como nela ingressamos. Oferecer o nascimento de volta à mulher é tarefa de todos aqueles que entendem o parto como evento humano, pleno de significados e valores.
A humanização do nascimento é, portanto, uma missão de todos os que prezam por um mundo de fraternidade, justiça e amor ao próximo.
Ricardo Herbert Jones
Obstetra
rhjones@superig.com.br
PORTO ALEGRE/RS
Depoimento de quem fez parto em casa
Júlia Dall' Alba, aluna do curso de Fabiana Panassol de yoga para gestantes, leu muito, se informou e optou pelo parto natural domiciliar. Teve sua filha saudável e perfeita, e desta experiência ela relata:
"Fui trilhando uma gravidez de descoberta, descoberta essa que vai além da mudança espiritual, fisiológica e psicológica de todo processo, alia-se a uma descoberta sóciopolítica do estar grávida. Descobri o parto protagonizado pela mulher, de fato e de direito, natural, humanizado. Descobri as leviandades e falácias que cercam toda sociedade quando falamos de parto, de nascimento. Descobri que parto hoje em dia é raridade, e que a regra da cesárea é aceita socialmente. Descobri que é possível ter um parto natural domiciliar resgatando a beleza do gerar vida, e junto com isso incorporar um embate contra o hegemônico. Descobri que gravidez não é doença, e que é possível uma grávida ser ativa e saudável, e que médicos (a maioria deles) têm noções de saúde, mas entendem mesmo é de doença, logo para eles gravidez é doença e deve acabar em cirurgia."
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