Como nasce uma família? Como surge uma mãe ou um pai? Estas são perguntas que não nos fazemos normalmente. Seguimos com nossos modelos internos, advindos da vivência de crescer ou não em família e raramente vamos além disto até que nos deparemos com questões da concepção. E, então, na atualidade podemos planejar a chegada dos filhos, sabendo que os mesmos nos farão mudar de vida, de papel e de status social.
A vida se faz num instante único da concepção. Um instante que marcará a vida de todos os envolvidos e que acontece no silêncio escuro do ventre de uma mulher. Mas será esta condição que a torna mãe? Penso que isto nos faz procriadoras ou genitoras, mas tornar-se mãe ainda exigirá mais das mulheres. Nada tão custoso assim, mas que, se não existir, pode impedir que a maternidade se consolide, ou que a criança se desenvolva com integridade emocional. A disponibilidade emocional e psicológica permitirá abrir espaço para acolher um novo ser. E isto não está associado ao fato da gravidez, nem para as mulheres, muito menos para os homens.
É necessário algo mais profundo, algo ligado à natureza do cuidado da espécie, ao desejo de continuidade que vem instaurar o desejo de cuidar de um ser vivo, totalmente dependente nos seus primeiros anos de vida e que, a partir deste cuidado, se vincula eternamente à nossa alma pela história em comum que traçamos dia a dia. Geralmente acaba gerando amor. Amor de cuidado, este que damos por considerar que qualquer ser vivo merece nossa atenção e que garante atender necessidades para a manutenção da vida. E amor de vínculo, este que sentimos vibrar com a importância que o ser único ganha em nossas vidas, pela reciprocidade do afeto, pelo reconhecimento e confiança que vamos criando nas nossas interações. Este sentimento não requer vínculo de sangue, requer sensibilidade e abertura, apenas isto, a reciprocidade positiva. É neste arcabouço afetivo que nasce uma família, na presença de alguém que os adultos podem chamar de filho.
A alma fica marcada por criaturas que zelamos - O privilégio das pessoas que adotam uma criança é a gravidez psicológica e voluntária. Sim, porque a decisão de adotar é algo consciente e gestado no coração e na mente. Se fruto apenas de um impulso momentâneo, ou da necessidade de preencher vazios, superior ao desejo de interagir de fato com uma criança real, com suas vivicissitudes e história anterior, tal situação pode ser desastrosa. A partir da hipótese de adotar, os riscos, as dificuldades, o desejo se forma num ambiente interno reflexivo que se não acalentado pela abertura ao genuíno, pode gerar o mito da eterna dúvida sobre a escolha, pois estamos ainda mergulhados em preconceitos que impedem de conceber que tudo que pode acontecer com um filho adotivo, pode também ao filho biológico, pois ambos têm algo em comum: seres humanos em desenvolvimento.
Cuidar de um filho requer muito e não é uma tarefa de alguns dias ou meses. Não existe devolução, não é uma mercadoria ao nosso bel prazer ou realização do ego – o que não invalida o orgulho diante das conquistas dos filhos. Um filho permanece em nós para o resto de nossas vidas, a alma fica marcada por estas criaturas que zelamos. São tantas as demandas de crescimento pessoal que esta empreitada nos demanda, como as funções e papéis que exercemos que urgem se modificar ao longo do crescimento dos pequenos para assim concretizar o desenvolvimento sadio da família.
Um filho nos chega com uma missão mínima em nosso próprio desenvolvimento: sairmos do nosso “ensimesmamento”, nos desprender das nossas necessidades individuais e exercer a capacidade de adiamento em nome de alguém que necessitará de nós, por algum tempo, para sobreviver. Um filho nos traz a chance da transcendência. Tornar-se pai ou mãe é um trajeto de desprendimento, de ir além de si mesmo. É um desafio de evolução, um chamado de coerência. É o amor e o prazer em ver criaturinhas percorrerem a vida em busca de mais vida e poderem olhar para trás nos acenando como porto seguro. É neste lugar de cuidado e afeto que a família se funda.
Rute Rodrigues
Psicóloga (CRP 07/ 8374) Esp. Arteterapia (CENTRARTE), Formação Biodanza, Terapia de Famílias e Casais (NURF), Dinâmica dos Grupos (SBDG), Ludoterapia. Psicoterapeuta. Desenvolve trabalhos com grupo em ação social. Coordenadora do Núcleo de Adoção do Projeto Ninho—Educação Afetiva. Sua experiência com questões da adoção vem da participação em pesquisa no Hospital Presidente Vargas e no Grupo Ter-na Adoção como facilitadora do grupo de crianças, atendimento a grupos multifamiliares, atendimento psicoterápico, aconselhamento, palestras e grupos de preparação à adoção.
http://www.projetoninhors.blogspot.com/
http://www.coisasderute.blogspot.com/
rutepoa@terra.com.br
PORTO ALEGRE/RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário